quinta-feira, 10 de abril de 2008

O português que nos pariu, de Angela Dutra de Menezes

A história de Portugal, e a sua influência na história do Brasil, pela pena de uma jornalista brasileira cheia de humor. E começa assim:

Receita de português

Coloque uma vasilha dentro de água. A massa só alcançará o ponto exacto se os ingredientes forem misturados em recipiente mergulhado na água salgada. Senão, a receita desanda.
Ingredientes:
• Homens pré-históricos do vale do Tejo e do Sado.
• Um punhado de povos indígenas, principalmente lusitanos. Se possível, da tribo liderada por Viriato.
• Celtas - apenas para polvilhar.
• Romanos.
• Bárbaros: alanos caucasianos, vândalos germânicos e escandinavos, suevos e visigodos germânicos – estes últimos dissolvidos na civilização romana.
• Mouros: tribos islamizadas do Marrocos e da Mauritânia.
• Uma pitada de árabes.
• Judeus sefarditas (ibéricos) – coloque um punhado entre um ingrediente e outro. Reserve a porção maior para o final da receita.
• Cristãos a gosto.
Modo de fazer:
Coloque na vasilha os pré-históricos. Dê preferência aos que apresentarem características físicas do português contemporâneo: estatura mediana e dolicocéfalos. A arqueologia prova que os pré-históricos ibéricos já se assemelhavam aos gajos pós-modernos - ora, pois.
Tampe a vasilha com um pano húmido. Espere fermentar até se transformarem em tribos pacíficas e receptivas a ondas migratórias oriundas de vários pontos europeus. Não se preocupe se alguns, sorrateiramente, fugirem pela borda da vasilha. O ancestral do português já cultivava vocação viajeira, muitos chegaram à Inglaterra e à Normandia. Apenas oriente os neofujões para não tomarem o rumo de Brasília. Nunca se sabe o que lhes pode acontecer.
Polvilhe um pouco de celtas. Além do charme, você vai introduzir o domínio da metalurgia e a vocação para o esoterismo. Afinal, quem não gosta de druidas? Além de estarem em moda, eles acrescentarão o toque exótico ao paladar do prato.
Lentamente despeje os romanos. Atenção: vai sair pancadaria. Maneje com calma a colher de pau para driblar Viriato e outros caudilhos que não apreciarão o novo ingrediente. Cuidadosamente misture os revoltosos, os romanos e as tribos que se lixaram para a invasão romana. No fim dará certo. É questão de paciência.
Bata levemente durante 500 anos. A massa crescerá e revelará um povo urbano, meio escravo/meio livre, que falava latim vulgar e sofisticou o comércio e a agricultura. Enfim, quase um luxo.
Introduza os bárbaros. Primeiro os alanos, vândalos e suevos. Capriche nos suevos pois eles chegam para marcar presença: adoram trabalhar com enxadas e logo escolherão terras para cultivar. Por favor, convença-os a abandonar os instrumentos agrícolas às margens da vasilha. Alguém pode quebrar o dente quando o português for servido.
Descanse a colher de pau. Os romanos embolaram tanto o meio de campo que a turma abriu os braços para os novos conquistadores. Deixe a natureza agir. Você verá que, infiltrados na massa, estes bárbaros inaugurarão a era dos portugueses de olhos claros - um charme.
Adicione os visigodos romanizados - ou federados, como os romanos chamavam os povos conquistados que, de rabo entre as pernas, lutavam para defendê-los. Espertamente, o Império de Roma utilizava a estratégia de lançar bárbaros contra bárbaros. Mais ou menos como os norte-americanos de hoje, que engrossam seu exército com negros e latinos da periferia – alguém ainda duvida que a História se repete?
Misture cuidadosamente. Este momento é delicado: o sucesso do português dependerá, exclusivamente, de sua competência culinária. O gosto dos visigodos deve sobrepor-se ao dos vândalos e dos alanos. Apenas suavemente os bárbaros vencidos perfumam o prato – quase uma especiaria, o toque de classe.
Quando vândalos e alanos se dissolverem, bata vigorosamente pois visigodos e suevos tenderão a encaroçar por 150 anos. Mantenha-se atento à receita. Não pare de bater nem mesmo quando os visigodos argumentarem serem os inventores do status quo da sociedade medieval portuguesa: clero, nobreza e povo – grande novidade. Faça-se de surdo e, até o último visigodo desmanchar, capriche em revolver a massa. Afinal, visigodos são guerreiros: podem armar uma falseta e solar o português.
Espere inúteis três séculos – visigodo é um chuchu histórico, só faz volume, não larga gosto – e jogue os árabes e mouros. A massa ficará mais encorpada, adquirirá novos contornos, novas falas, novas técnicas, uma nova arquitectura. O sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor de Casa - Grande & Senzala, assinala que é neste momento que surge o português típico, além de um original subgrupo característico do Norte, emblemático da milenar cruza de raças: homens morenos, cabelos castanhos, escuros olhos mouros, com barba e bigode louros ou ruivos.
O Brasil que – final do século XIX, início do XX – recebeu maciça imigração de lusitanos do Norte, tem incontáveis homens morenos de barba clara. A maioria não sabe, mas eles são os representantes tropicais da malemolência lusa, useira e vezeira em misturar o próprio sangue ao sangue dos visitantes – eta povo hospitaleiro este que nos descobriu.
Amasse, delicadamente, os islâmicos e os judeus sefarditas que, aos punhados, você veio introduzindo entre um e outro ingrediente. Deixe descansar. Eles se aglutinarão naturalmente. Naquele tempo, estes dois povos, amigos, interagiam sem culpas.
Nesta altura, o português estará quase pronto. Agora, basta levar ao forno bem quente - eles são passionais, não assam em banho-maria.
Com o açúcar, faça uma calda em ponto de bala. Adicione cristãos a gosto, de todos os matizes e origens. Está pronto o português.
Desenforme e sirva-os ao Novo Mundo.

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